TESE APROVADA NO 20º CONAMAT: Inversão do ônus da prova nos processos que tratem sobre assédio sexual.

Parabenizamos nossa orientadora, Dra. Adriana Manta, magistrada do TRT5, pela aprovação da acerca da inversão do ônus da prova nos processos que tratem sobre assédio sexual, aprovada no 20º CONAMAT realizado entre 27 e 30 de abril em Porto de Galinhas/PE.

A aprovação da tese representa um avanço nos casos de assédio sexual, cuja prova é tão delicada. Em primeira mão, a autora compartilha com o IBADFEM a tese e justificativa. Confira!

EIXO TEMÁTICO: Justiça do Trabalho de hoje e de amanhã

SUB-EIXO TEMÁTICO: Acesso à justiça

TÍTULO: INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NOS PROCESSOS QUE TRATEM SOBRE ASSÉDIO SEXUAL.

EMENTA/TESE: A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NAS AÇÕES QUE VERSAM SOBRE ASSÉDIO SEXUAL NO TRABALHO, À LUZ DA CONVENÇÃO 190 E RECOMENDAÇÃO 206 DA OIT, CONSTITUI GARANTIA DE ACESSO À JUSTIÇA DO TRABALHO.

JUSTIFICATIVA:

O assédio e a violência no mundo do trabalho, além de incompatíveis com o trabalho digno e decente, afeta a saúde física e mental das pessoas trabalhadoras, trazendo impactos psicológicos, pessoais, sociais e profissionais. Verifica-se no Direito do Trabalho omissão legislativa em relação à definição do assédio sexual, cabendo à doutrina e jurisprudência juslaboral desenvolverem a temática.

O assédio sexual é tipificado no Código Penal, art. 216-A[1], mas a definição ali constante não considera que a prática assediadora frequentemente não visa a obtenção de favorecimento sexual e nem sempre é cometida por superior hierárquico, podendo o agressor ter intenção puramente discriminatória, constituindo violência de gênero no sentido de subjugar a mulher, demonstrando a sua misoginia, ou de simples exercício de poder do homem sobre o corpo da mulher, presumido disponível por ocupar o espaço público ao ingressar no mercado de trabalho (FERRITO, 2021)[2].

Portanto, a definição de assédio sexual no Direito do Trabalho tende a ser mais ampla, em comparação ao Direito Penal. O MPT e a OIT conceituam o assédio sexual no ambiente de trabalho como “conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra a sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando sua liberdade sexual”[3]. Distinguem-se, em doutrina, dois tipos de assédio sexual: assédio por chantagem e por assédio por intimidação. Assédio sexual por chantagem ou quid pro quo é o que ocorre quando há a exigência de uma conduta sexual, em troca benefícios ou para evitar prejuízos na relação de trabalho. Assédio sexual por intimidação ou ambiental é o que ocorre quando há provocações sexuais inoportunas no ambiente de trabalho, com o efeito de prejudicar a atuação de uma pessoa ou de criar uma situação ofensiva, de intimidação ou humilhação. Caracteriza-se pela insistência, impertinência, hostilidade praticada individualmente ou em grupo, manifestando relações de poder ou de força não necessariamente de hierarquia.

A violência estrutural que acomete as mulheres em nossa sociedade, sobretudo no ambiente doméstico, guarda relações diretas e corrosivas com o ambiente de trabalho, relacionando-se diretamente os casos de assédio sexual no trabalho com a mesma violência estrutural que serve de alicerce ao patriarcado. É preciso levar em conta as assimetrias de gênero também nas relações laborais.

Recente pesquisa da Organização Think Eva[4] (2020) apontou que 47,12% das mulheres afirmavam ter sofrido assédio sexual no trabalho, através de práticas como solicitação de favores sexuais (92%), contato físico não solicitado (91%) ou abuso sexual (60%). As assimetrias transformam tais práticas assediadoras em clara violência de gênero, facilmente constatada a partir da análise dos números no que tange à sua incidência em relação ao gênero: a) homens assediando mulheres – 90%; b) homens assediando homens – 9%; c) mulheres assediando homens – 1% (KAY, 2002)[5].

Em total dissonância às pesquisas anteriormente citadas, após a entrada em vigor da Reforma Trabalhista (Lei n.º 13.467/2017), observou-se drástica redução no quantitativo de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho mencionam a ocorrência de assédio sexual no ambiente de trabalho, conforme dados divulgados pelo TST[6]. De acordo com o levantamento, em 2015 foram propostas 7.648 reclamações trabalhistas relatando a ocorrência de assédio sexual, enquanto em 2019 constatou-se apenas 2.805 ações versando sobre a temática. Dentre os principais motivos para a redução das demandas após a Reforma Trabalhista, se encontra a dificuldade em produzir prova acerca da violência ou assédio sexual sofridos, já que a conduta assediadora por vezes ocorre longe dos olhares de outras pessoas.

A resposta hostil à participação feminina no mundo do trabalho leva a refletir sobre a urgente e necessária ratificação do Brasil à Convenção 190 da OIT (2019), que objetiva a eliminação da violência e assédio no mundo do trabalho, complementada pela Recomendação n.º 206.

A Convenção 190 da OIT surgiu em 2019, objetivando a eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, dando uma abordagem bastante completa ao tema, incluindo violência e assédio baseado em gênero. A Convenção conceitua violência e assédio como um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou a ameaça deles, realizados com frequência ou numa única vez, de modo que “visem, causem, ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico”, destinado a todas as pessoas inseridas no mundo do trabalho, incluindo estagiários (as) ou aprendizes, pessoas despedidas ou em busca de emprego, e as pessoas que exercem em geral os deveres ou a autoridade de empregador, nos setores público ou privado. O item “b” do artigo 1° traz uma especial menção à violência de gênero, o que, mais uma vez, mostra que a OIT está atenta à realidade das mulheres no mercado de trabalho, as quais estão mais suscetíveis e vulneráveis às práticas de violência.

A Recomendação n.º 206, que complementa a Convenção n.º 190, estabelece a abordagem “inclusiva, integrada e sensível ao gênero” a ser assegurada pelos Membros na abordagem da violência e assédio no mundo do trabalho e traz expressamente em seu texto previsão de inversão do ônus da prova, em processos que envolvam violência e assédio baseado em gênero (item 16, e).

Sob essa perspectiva, a Recomendação Geral n. º 33 sobre o acesso das mulheres à justiça do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres  (CEDAW)[7] tem por objetivo “a proteção dos direitos das mulheres contra todas as formas de discriminação com vistas a empoderá-las como indivíduos e titulares de direitos”, apontando que “o efetivo acesso à justiça otimiza o potencial emancipatório e transformador do direito”.

Segundo o Comitê “a discriminação contra as mulheres, baseada em estereótipos de gênero, estigmas, normas culturais nocivas e patriarcais, e a violência baseada no gênero, que particularmente afeta as mulheres, têm um impacto adverso sobre a capacidade das mulheres para obter acesso à justiça em base de igualdade com os homens”.

A Recomendação aponta seis componentes essenciais para garantir o acesso à justiça, dentre eles a justiciabilidade, acarretando o acesso irrestrito das mulheres à justiça e a boa qualidade do sistema de justiça através de elementos como eficiência, independência, imparcialidade, abertos a medidas práticas inovadoras e sensíveis a gênero. Aprofundando as recomendações do Comitê ao tratar da justiciabilidade, é possível identificar as premissas básicas da atuação judicial com perspectiva de gênero, dentre elas a determinação de que os Estados ampliem o acesso irrestrito das mulheres aos sistemas de justiça; assegurem que os profissionais dos sistemas de justiça lidem com os casos de uma forma sensível a gênero; adotem medidas para garantir que as mulheres estejam igualmente representadas no judiciário; revisem as regras sobre o ônus da prova, a fim de assegurar a igualdade entre as partes.

Diante da Recomendação n.º 128 do CNJ[8], que recomenda aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[9], lançado em 19 de outubro de 2021, relevante instrumento jurídico que abarca considerações teóricas sobre gênero, discriminação e igualdade; e contém um guia para que os julgamentos ocorridos nos diversos âmbitos da Justiça efetivem o direito à igualdade e à não discriminação, sendo mais um instrumento de alcance da igualdade de gênero, à luz do qual as demandas que envolvam assédio e violência contra mulheres no ambiente de trabalho devem ser analisadas. O Protocolo aponta expressamente para a imprescindibilidade da utilização do controle de convencionalidade no processo decisório que busque a efetiva realização dos direitos humanos. Nesse sentido, em face do compromisso internacional do Estado Brasileiro no que tange à promoção e proteção dos direitos humanos, devem as (os) magistradas (os) respeitar e aplicar as normas e a jurisprudência que integram os sistemas internacionais de proteção – tanto em âmbito regional como global. Vale lembrar que o Brasil, como signatário do Tratado de Viena (1969), tem dever de cumprimento dos tratados por ele firmados de boa-fé. Isto quer dizer que os signatários dos tratados não podrão invocar o direito interno como justificativa para o não cumprimento das disposições internacionais.

A redação conferida ao art. 818 da CLT, pela Lei n.º 13.467/17[10], embora mantenha a distribuição do ônus da prova fundada em fato controverso, permite a sua distribuição dinâmica, diante “de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo”, contemplando, portanto, as hipóteses ações envolvendo assédio sexual no ambiente de trabalho.

A análise e aplicação combinada dos dispositivos anteriormente citados resulta em garantia de amplo acesso ao Poder Judiciário trabalhista às mulheres vítimas de violência e assédio sexual no mundo do trabalho.

AUTORA: Adriana Manta da Silva

E-MAIL: adrimanta@gmail.com


[1]  Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

[2]                FERRITO, Bárbara. Direito e desigualdade: uma análise da discriminação das mulheres no mercado de trabalho a partir dos usos dos tempos. São Paulo: Ltr, 2021.

[3] MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO; OIT. Assédio Sexual no Trabalho – Perguntas e Respostas. Brasília, 2017. p. 9. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—ilo-brasilia/documents/publication/wcms_559572.pdf. Acesso em 08 Mar 2022.

[4]  Disponível: https://thinkeva.com.br/pesquisas/assedio-no-contexto-do-mundo-corporativo/ Acesso: 04 Ago. de 2021.

[5]                KAY, Herma Hill; WEST, Martha S. Sex-based Discrimination: text, case and materials. Saint Paul: West Group, 2002.

[6]                Disponível em:         https://www.conjur.com.br/dl/reforma-trabalhista-acoes-assedio.pdf Acesso em 14 de Ago de 2021.

[7]                https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-CEDAW.pdf

[8]                https://atos.cnj.jus.br/files/original18063720220217620e8ead8fae2.pdf . Acesso em 14 de Mar de 2022.

[9]                https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf . Acesso em 14 de Mar de 2022.

[10]              Art. 818. O ônus da prova incumbe:

I – ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II – ao reclamado, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante.

§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

§ 2o A decisão referida no § 1o deste artigo deverá ser proferida antes da abertura da instrução e, a requerimento da parte, implicará o adiamento da audiência e possibilitará provar os fatos por qualquer meio em direito admitido.

§ 3o A decisão referida no § 1o deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

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