Por Victoria da Paixão e Bruna Fernandes
O direito a legítima defesa[1] e o medo da branquitude
Poderia listar inúmeros casos de racismo que ocorrem diariamente no Brasil, não é novidade para ninguém. Quem fica surpreso com a situação é quem tem o privilégio de escolher não ver. Esse texto é sobre os dois últimos casos que chamaram a atenção na mídia: a) o primeiro caso, sobre a violência sofrida por duas crianças africanas que tem uma mãe branca[2]; e b) o segundo, sobre a violência sofrida por mãe e filho negros[3].
De um lado, Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso presenciam a ação racista contra seus filhos, Titi e Bless, e mais uma família de turistas angolanos em Portugal, de outro, aqui no Brasil, a mãe de Miguel, Mirtes Renata, presencia a ação racista da justiça brasileira enquanto a assassina Sarí Corte Real segue livre após condenação da morte de um menino, negro, de apenas 5 anos. Os dois casos trazem questões importantes: quem tem o direito de legítima defesa ou de autodefesa[4]? E até que ponto essa defesa é legitimada?
Quando crianças brancas sofrem algum tipo de agressão ou são assassinadas, ocorre uma intensa mobilização popular para que os criminosos sejam levados à justiça[5], quando não se fala em agressões físicas ou até mesmo pena de morte. Com as crianças negras é diferente: Giovanna ao defender seus filhos recebe críticas de “passar do limite”, não sendo colocada no lugar de raivosa, diferentemente de muitas mães negras que são vistas dessa forma, e em hipótese alguma poderiam partir para agressão ao defender seus filhos. A justificativa de “perder a razão” ou “se igualar ao agressor” cairia por terra se fosse o filho branco de Giovanna que sofresse algum tipo de agressão.
Ao menos, Ewbank pôde gritar, ela pôde ver a agressora ser conduzida a delegacia. Agora, que direito a defesa teve Mirtes? Que direito a defesa teve Miguel? Uma criança negra é assassinada por uma mulher BRANCA, onde está a justiça?
O medo da branquitude de que o negro entenda que ele tem o direito de se defender já começam a operar. Giovanna pode até gritar, mas não tem o direito de agredir a racista como teria caso alguma agressão fosse dirigida a seu outro filho. Mirtes não teve direito nem a isso quando o seu filho foi assassinado.
Não estou aqui comparando dores, aquela que quer ser mãe deveria ter o direito garantido de maternar e proteger seu filho, porém, não é isso que acontece quando falamos de corpos negros, pois o que entra nessa equação não é só a cor da mãe, mas também a cor da criança e a cor do agressor. Todas essas variáveis precisam ser debatidas, pois mudam a reação da branquitude de legitimar ou não o direito à defesa.
É ela – a branquitude – que controla a mídia e o capital, decidindo quem pode matar e quem pode morrer. Mulheres brancas quando cometem algum crime, aparecem na televisão com um terço na mão e choram, mulheres negras quando sofrem alguma agressão, não podem denunciar e são silenciadas. Homens brancos são “cancelados” na internet ao cometer crimes e seguem suas vidas, homens negros são mortos ao serem confundidos com bandidos por conta de uma foto.
Mas e se as pessoas negras começarem a se defender dessas agressões? Não apenas das agressões cometidas pelo Estado, mas das agressões cometidas pelas pessoas brancas no dia a dia? O direito de legítima defesa está inserido na Constituição, mas ao valer desse direito, as pessoas negras são reprimidas. O direito de defesa também está na Constituição, mas qual é o acesso dado a essas pessoas negras?
Várias mães negras estão presas hoje por conta de furto, roubo ou tráfico de drogas, mas a assassina Sarí Corte Real está livre. Existe uma assimetria na (in)justiça brasileira. A nossa mente colonizada naturaliza esse tipo de situação, é costumeiro ver pessoas negras serem presas, é costumeiro que pessoas brancas sejam perdoadas por seus erros, e é ainda mais costumeiro que pessoas negras não tenham direitos.
A branquitude opera ao decidir o que vai ganhar voz na mídia e o que será debatido, fazendo com que a gente, pessoas oprimidas ou que lutam contra opressões, esqueçamos as diversas formas de responder ao opressor, ou pior, que achemos errado responder ao opressor[6]. A docilização não cabe aos nossos corpos, devemos sim responder.
A assassina Real pôde matar Miguel e não ser presa, mesmo após ter sido condenada, ao passo que Mirtes não teve direito a nada! Giovanna teve o direito de ver a racista portuguesa ser conduzida a delegacia e de gritar, e Mirtes, novamente, não teve direito a nada!
A racista portuguesa está em casa, a assassina Real está em casa, as crianças de Giovanna estão mais uma vez passando pelo processo de sofrer uma agressão, Miguel já não está mais nesse plano físico e Mirtes não teve direito a nada! A família de Angolanos que também sofreram as agressões, mas que sequer foram tratados nominalmente nos noticiários, tiveram direito a quê?
[1] “Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” in: BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
[2] FANTÁSTICO. Giovanna Ewbank sobre ataque racista sofrido pelos filhos: ‘Teria essa atenção toda se fôssemos pais pretos de crianças pretas?’. G1 Globo. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/07/31/giovanna-ewbank-sobre-ataque-racista-sofrido-pelos-filhos-teria-essa-atencao-toda-se-fossemos-pais-pretos-de-criancas-pretas.ghtml> Acesso em: 02 agos. 2022.
[3] G1 PERNAMBUCO. Caso Miguel: Ludmilla, Ícaro Silva e outros artistas pedem por justiça e questionam Sarí Corte Real não ter sido presa. G1 Globo. Disponível em: <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/08/01/caso-miguel-artistas-pedem-por-justica-e-questionam-sari-nao-ter-sido-presa.ghtml> Acesso em: 02 agos. 2022.
[4] “7° Acreditamos que podemos acabar com a brutalidade policial em nossa comunidade negra organizando grupos negros de auto-defesa dedicados a defender nossa comunidade negra da opressão e brutalidade da polícia racista. A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos nos dá o direito de portar armas. Portanto, nós acreditamos que todo o povo negro deva se armar para auto-defesa.’” in: Panteras negras: estratégia e revolução, organizado pelo coletivo Casa da Resistência, disponível em <https://gatopretocomunicacao.files.wordpress.com/2016/12/caderno-completo.pdf> Acesso em: 02 agos. 2022.
[5]MEMÓRIA GLOBO. Caso Isabella Nardoni: O assassinato da menina Isabella Nardoni, jogada pela janela pelo pai e pela madrasta, chocou o país. Memória Globo. 2021. Disponível em: <https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/caso-isabella-nardoni/noticia/caso-isabella-nardoni.ghtml> Acesso em: 02 agos. 2022.
[6] “Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor.” (Malcolm X)
REFERÊNCIAS-BASE PARA ESTE ARTIGO:
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 94 p.
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019. 152 p.
CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
DAVIS, Angela. Atravessando o Tempo e Construindo o Futuro da Luta Contra o Racismo. Youtube, 26 jul. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h_t_2ExQyV8>. Acesso em: 05 jul. 2020.
_____. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2017. 263 p.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Brasil: Ubu Editora, 2020. 320 p.
FRANKENBERG, Ruth. A miragem de uma branquitude não-marcada. In: VRON, Ware (org.). Branquitude – Identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond Centro de Estudos Afro-Brasileiros, 2004.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. Editora Perspectiva S/A, 2016. 200 p.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2012.
SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco: hegemonia branca e média no Brasil. In: VRON, Ware (org.). Branquitude – Identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond Centro de Estudos Afro-Brasileiros, 2004.