O DIREITO CIVIL NO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Em 2013 o Supremo Tribunal de Justiça da Nação (SCJN) do México publicou a primeira edição do “Protocolo para juzgar con perspectiva de género”[1] como meio reparatório especificamente previsto nas decisões exaradas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconhece a responsabilidade do país no processamento de casos de violência de gênero, a exemplo dos casos González e outras (Campo Algodonero) vs. México (2009)[2], Fernández Ortega e outras vs. México (2010)[3] e Rosendo Cantú e outra vs. México (2010)[4].

Apesar das dificuldades de implementação, o documento foi um marco e aos poucos o Poder Judiciário foi estabelecendo bases metodológicas para julgamento sob a perspectiva de gênero, realizando capacitações[5], desenvolvendo ferramentas complementares [6] para sua aplicação e compreensão pela população.

Atualmente, a última versão do protocolo é datada de 2020[7] e possui 306 páginas que se dedicam a explicar conceitos básicos sobre gênero, imparcialidade, tratados internacionais, jurisprudência e, principalmente, a metodologia empregada para verificação de tantas desigualdades.

O Brasil, por sua vez, também conta com julgamentos internacionais e sustenta a pecha de país tolerante à violência de gênero nos mecanismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos, como o caso Alyne Pimentel vs. Brasil (Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW)[8], Maria da Penha vs. Brasil[9] (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), Márcia Barbosa vs. Brasil[10] (Corte Interamericana de Direitos Humanos), Simone André Diniz vs. Brasil[11] (Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

Desta forma, em 2021 foi a nossa vez de lançar nosso próprio manual, inspirado nos passos do México, tendo sido publicado o “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero – 2021”, fruto do grupo de trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça que tem por objetivo colaborar com a implementação das políticas nacionais relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, constituindo instrumento alinhado com o objetivo de nº 5 da Agenda 2030 da ONU.

O Protocolo brasileiro conta com 136 páginas e é dividido em três partes: a primeira para explicar aos magistrados(as) os conceitos mais básicos sobre gênero, sexualidade e identidade de gênero; a segunda parte é dedicada a um guia “passo a passo” para a magistratura; e a última parte elenca as questões de gênero por ramos da justiça.

Sem dúvidas, esse instrumento representa um marco para o nosso país, sobretudo após a recomendação expressa aos órgãos do Poder Judiciário para que promovam a adoção do protocolo, consoante Recomendação Nº 128 de 15/02/2022 do Conselho Nacional de Justiça.

Contudo, apesar do brilhantismo do referido protocolo, o que se vê é que grande parte do judiciário brasileiro desconhece os conceitos mais fundamentais e simples sobre gênero, sexualidade e identidade – tanto é que a primeira parte do protocolo vem justamente para suprir essa lacuna – e que embora o Brasil seja signatário de diversos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos, internalizados com força supralegal, a exemplo da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Políticos da Mulher (1952)[12], Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979)[13], Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará – 1996)[14] as disposições normativas parecem ser grandes novidades, quando na verdade não o são.

Ademais, partindo da premissa de que o mito da neutralidade do juiz[15] fora superado, é necessário pontuar a subrepresentatividade de mulheres magistradas no poder Judiciário e do teto de vidro[16] para ascensão na carreira, especialmente das mulheres negras, que em geral representam uma parcela da sociedade que experimenta as violências de forma cumulada, o que chamamos de violências sobrepostas[17].

Isto porque, o patriarcado que garante a subordinação das mulheres aos homens, não é o único princípio estruturador da sociedade, pois a supremacia masculina perpassa todas as classes sociais e questões raciais, fazendo com que a mulher, negra e pobre ocupe o último lugar na “ordem de bicadas” na lógica do galinheiro da sociedade brasileira[18].

O diagnóstico da participação feminina no judiciário[19] aponta que em 2019 o número de magistradas em atividade representa apenas 38,8% da magistratura e esse número diminui para 37,6% se considerada a atuação na última década. Quanto à questão racial, o Conselho Nacional de Justiça realizou uma pesquisa em 2021[20], tendo demonstrado que mulheres brancas são a absoluta maioria entre ao número de magistradas no Poder Judiciário em qualquer cargo e entre os magistrados negros, temos maior número de homens negros do que mulheres negras em todos os cargos ocupados.

É louvável que o Conselho Nacional de Justiça trabalhe arduamente para mudar o cenário da discriminação de gênero no Poder Judiciário, acertando ao trazer o recorte racial em alguns pontos trabalhados, enegrecendo as referências bibliográficas, mas o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – 2021 demonstra que esse é apenas um passo, havendo muito trabalho a ainda ser feito.

Nesse aspecto, é de fundamental importância que se invista na educação dos magistrados(as) no letramento racial e de gênero – e não apenas eles, mas também serventuários, o ministério público, a defensoria e a advocacia – e que, assim como no México, sejam desenvolvidas ferramentas que dialoguem com os objetivos que estão na ordem do dia da luta contra a violência de gênero e de raça.

Não obstante, o protocolo propõe uma análise exemplificativa dos ramos das justiças federal, estadual, do trabalho, eleitoral e militar, tendo dedicado a terceira parte do escrito a explicar brevemente a transversalidade dos temas assédio, audiência de custódia e prisões por dialogarem com pelo menos mais de um dos ramos de justiça e, em seguida, promoveu a divisão entre os ramos.

No que tange ao capítulo dedicado à justiça estadual, esse foi dividido em a) Violência de gênero e questões de direito processual, b) Direito Penal, c) Feminicídio, d) Direito da Família e Sucessões, e) Infância e Juventude, f) Direito Administrativo, g) Interseccionalidades, h) A rede de enfrentamento de violência de gênero.

Muito embora a parte dividida por ramos da justiça seja claramente exemplificativa – portanto, não exaustiva – esse é o primeiro instrumento dedicado a tratar sobre a perspectiva de gênero nos processos judiciais, logo é natural se esperar que seja lançada luz na maior quantidade de temas que tenham relevância por área, seguindo a proposta.

Nesse aspecto, as sete cadeiras de Direito Civil foram reduzidas ao tópico de família e sucessões, o que é lamentável, pois certamente seria uma ótima oportunidade para trabalhar de forma mais aprofundada temas controvertidos na seara dos Direitos da Personalidade e, sobretudo, Responsabilidade Civil, especialmente no que toca a honra e imagem das mulheres no judiciário e nos critérios de quantificação das indenizações quando mulheres se socorrem da tutela reparatória.

Teríamos decisões judiciais menos misóginas se os estereótipos de gênero da loucura, desequilíbrio, excesso de emoção, pequenez, subordinação, incapacidade (ouso dizer que ainda é um resquício do Código Civil de 1916), revanchismo, falta de ocupação histórica e culturalmente atribuída às mulheres fossem afastados. Assim, não teríamos os precedentes vergonhosos que tratam da “reputação elástica” no caso Fernanda Young[21], que deem tratamento diferenciado às mulheres em razão de sua aparência física como no caso da Maitê Proença[22] ou que questionam a moral de uma vítima de vingança pornográfica que enviou nudes ao ex-namorado[23].

Na Parte Geral, o protocolo deixou de observar questões tão relevantes sobre o Direito ao próprio corpo, Direitos sexuais e reprodutivos e a própria autonomia privada das mulheres inclusive na utilização de métodos contraceptivos, esterilização, planejamento familiar e aborto. Isso sem falar do Direito à privacidade e à intimidade, já que são as meninas e mulheres as maiores vítimas de assédio, vingança pornográfica, sexting e outras formas de assédio virtual[24].  

No estudo do Direitos das Coisas seria incrível poder contar decisões judiciais em todo o país que de fato acolham o direito de propriedade, adotando diligências enérgicas ao longo dos processos, sobretudo quando falamos dos famigerados casos de ocultação patrimonial tão conhecidos nos divórcios litigiosos, sem que as mulheres sejam taxadas de interesseiras, aproveitadoras ou alpinistas sociais.

Dentre tantos outros exemplos, podemos citar o aluguel pelo uso exclusivo do imóvel comum e o caso das vítimas de violência que permanecem nos imóveis, a continuidade da posse de determinados dos bens para uso familiar e cuidado dos filhos, além da manutenção automática contrato de locação (e da posse direta) em nome do cônjuge que permanecer no imóvel alugado por ocasião da separação.

No que tange ao Direito das Famílias e das Sucessões, o saudoso Orlando Gomes já nos apresentava o conservantismo e a lógica patriarcal da codificação[25], entretanto o protocolo se ocupou do tema em duas páginas com uma abordagem que considero superficial dos pontos: alienação parental, alimentos e partilha de bens.

De fato, não há como conceber um protocolo que inclui gênero como categoria analítica, mas não enfrenta a alienação parental com a devida clareza, tendo deixado de mencionar a problemática que envolve o assunto. Basta dizer que a alienação parental é uma tese que não se tem consenso em nenhuma das ciências, tampouco há comprovação científica, existindo em pouquíssimos países, sendo que no Brasil há um grande e justíssimo movimento em prol da revogação da Lei de Alienação Parental.

Há de se reconhecer e encontrar formas para combater as violências que muitas mulheres são submetidas no curso de ação de guarda, convivência ou denúncia de alienação parental, que por vezes fazem do processo judicial um eficaz mecanismo de violência, incorrendo na prática do lawfare de gênero[26].

Isso sem contar os números elevadíssimos de casamento infantil (e união estável) no Brasil, da relativização da idade núbil na união estável, da reserva dos 30% ou 20% dos alimentos aos pais e do superendividamento das mães em relação aos alimentos dos filhos, da audiência de conciliação e/ou mediação obrigatória, de tantos outros temas que o protocolo poderia ter mencionado, mas não o fez.

Há muito o que ser comemorado com essa primeira publicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça, representando um grande passo na busca de uma “justiça mais justa”[27]. Contudo, deixou de se debruçar sobre outros aspectos de gênero que são observados diuturnamente na Justiça Estadual na área cível e familiar, ao que se espera que seja objeto de futuros aprimoramentos, não restando dúvidas que ainda há muito o que se produzir no universo das práticas nocivas que vem sendo naturalizadas em matéria de Direito Civil.


[1] Versão de 2013 disponível em: http://archivos.diputados.gob.mx/Comisiones_LXII/Igualdad_Genero/PROTOCOLO.pdf. Acesso em 31 ago. 2022.

[2] Sentença disponível em https://www.corteidh.or.cr/cf/Jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=347&lang=es. Acesso em 31 ago. 2022.

[3] Sentença disponível em https://www.corteidh.or.cr/CF/jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=338. Acesso em 31 ago. 2022.

[4] Sentença disponível em https://www.corteidh.or.cr/cf/jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=339

[5] Vide capacitações de acesso amplo e irrestrito disponibilizados pela SCNJ  https://www.scjn.gob.mx/derechos-humanos/capacitaciones-inicio/genero. Acesso em 31 ago. 2022.

[6] Vide o HEOPAC, disponível em https://hecopac.scjn.gob.mx/. Acesso em 31 ago. 2022.

[7] Versão de 2020 disponível em https://www.scjn.gob.mx/derechos-humanos/protocolos-de-actuacion/para-juzgar-con-perspectiva-de-genero. Acesso em 31 ago. 2022.

[8] Recomendação CEDAW/C/49/D/17/2008, do caso Alyne Pimentel vs. Brasil, disponível em https://www2.ohchr.org/english/law/docs/CEDAW-C-49-D-17-2008.pdf. Acesso em 31 ago. 2022.

[9] Relatório da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos disponível em https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 31 ago. 2022.

[10] Sentença da Corte Interamericana dos Direitos Humanos disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_435_por.pdf. Acesso em 31 ago. 2022.

[11]  Relatório da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos disponível em http://www.cidh.org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm. Acesso em 31 ago. 2022.

[12] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/D31643.html. Acesso em 31 ago. 2022.

[13] Assinado pelo Brasil em 1981, internalizado pelo Decreto nº 89.460/1984 com reservas aos seus artigos 15, parágrafo 4º, e 16, parágrafo 1o, alíneas (a), (c), (g) e (h), revogado pelo Decreto nº 4.377/2002 que o implementou sem as reservas anteriores, tendo, ainda, promulgado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conforme Decreto nº 4.316/2002.

[14] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm. Acesso em 31 ago. 2022.

[15] Recomendamos a leitura do artigo “Neutralidade é um mito, mas a imparcialidade do juiz é um dever” de Kenarik Boujikian, disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jul-29/escritos-mulher-neutralidade-mito-imparcialidade-juiz-dever. Acesso em 31 ago. 2022.

[16] O teto de vidro é um termo cunhado para explicar um fenômeno que consiste, como explica Daniela Vaz, na “menor velocidade com que as mulheres ascendem na carreira, o que resulta em sua sub-representação nos cargos de comando das organizações e, consequentemente, nas altas esferas do poder, do prestígio e das remunerações” Esse fenômeno atinge as mulheres em diversas áreas, inclusive na área pública, muito embora estejam as oportunidades do setor público estejam sujeitas a seleções mais objetivas, como a realização de concursos públicos.

VAZ, Daniela V. O teto de vidro nas organizações públicas: evidências para o Brasil. Disponível em  https://www.scielo.br/j/ecos/a/FSfpH9NQg6qHy3Hky8tCXyt/?format= pdf&lang=pt. Acesso em 31 ago. 2022.

[17] CAVALCANTI, V. R. S. Violências sobrepostas: contextos, tendências e abordagens num cenário de mudanças. In: DIAS, I. (Org.). Violência doméstica e de gênero. Lisboa: Pactor, 2018, p. 1-27.

[18] SAFFIOTI, H.I.B. “Violência doméstica ou a lógica do galinheiro”. In: KUPSTAS, M. (org.).  Violência em debate. São Paulo, Editora Moderna, 1997a, p.3957.

[19] CNJ. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário. / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2019. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/08/relatorio-participacaofeminina.pdf Acesso em 31 ago. 2022.

[20] CNJ. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2021. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-290921.pdf Acesso em 31 ago. 2022.

[21] Disponível em https://www.jota.info/justica/juiz-diz-que-fernanda-young-tem-reputacao-elastica-09062017. Acesso em 31 ago. 2022.

[22] A atriz que teve o pedido de dano moral negado por ter sido veiculado pelo Jornal Tribunal a seu corpo desnudo em fotos tiradas exclusivamente para a Playboy e, de acordo com o desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, só mulher feia pode se sentir humilhada, constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou em revistas. As bonitas, não”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2000-fev-15/jornal_condenado_pagar_50_mil_maite_proenca Acesso em 31 ago. 2022.

[23] Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/204054/nao-cuida-da-moral-mulher-que-posa-para-fotos-intimas-em-webcam Acesso em 31 ago. 2022.

[24] SAFERNET Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Disponível em https://indicadores.safernet.org.br/. Acesso em 31 ago. 2022.

SAFERNET Indicadores do helpline. Disponível em https://helpline.org.br/indicadores/. Acesso em 31 ago. 2022.

[25] GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. 2ª ed. – São Paulo, Martins Fontes, 2006.

[26] MENDES, Soraia. DOURADO, Isadora. LAWFARE DE GÊNERO:  o uso do direito como arma de guerra contra mulheres. Disponível https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2022/02/SoraiaMendesIsadoraDourado_LAWFAREDEGENEROjaneiro2022.pdf.  Acesso em 31 ago. 2022.

[27] SEN, Amartya. A ideia de justiça. Companhia das Letras, São Paulo, 2011.

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